Amigos
De repente lembrei-me do carnaval e fiz junção com minha viagem pelo nordeste em 1960.
Mensagem carnavalesca que um veterano motociclista dedica aos seus jovens ‘irmãos’ estradeiros:
Há 50 anos atrás, ou seja, dia 14 de fevereiro de 1960, eu e um garupa saímos do Rio de Janeiro (Distrito Federal na ocasião) montados numa motocicleta para conhecermos o carnaval do Recife-PE, quando a estrada Rio-Bahia ainda era de terra e conhecida como “estrada da morte”.
Sem qualquer noção do que iríamos enfrentar e sem nenhuma pesquisa prévia sobre o percurso, tendo em mãos somente um mapa que na época era ofertado nos Postos de gasolina, partimos e durante o percurso “comemos o pão que o diabo amassou”.
Para início de conversa era uma moto modelo ‘street’ 500cc (não uma trail), que enfrentou barro, pedras, buracos e atoleiros. Havia ocasião que, após atolados saíamos de cima da moto e ela ficava em pé sozinha, presa pelo cárter e até a metade das rodas. Ato contínuo cortávamos galhos da caatinga (pequenas árvores que ladeavam a estrada), quebrávamos em tamanhos de 30/40cm e colocávamos na frente da roda dianteira, tal como uma esteirinha (trilha). Cavávamos até desatolar a moto e a empurrávamos por sobre a esteirinha até ao final do atoleiro. Montávamos nela e seguíamos em frente. Os menores atoleiros tinham cerca de 10m. de extensão.
Havia trechos que só nós conseguíamos passar, por haver a possibilidade desse e de outros recursos que só a motocicleta permitia. Motoristas de carros e caminhões que há muitos dias estavam ‘ilhados’ na beira da estrada, davam vivas quando por eles passávamos (hoje em dia isso não mais acontece por estar a Rio-Bahia toda pavimentada).
Mas em compensação muita coisa bonita vimos pelo nordeste, razão de fazer aqui um convite àqueles que não o conhecem para que o visitem, pois é maravilhoso. Se lerem o meu livro “Motociclistas Invencíveis” onde existe completo relato da viagem, verão tratar-se de uma região deslumbrante, carismática e de notável beleza natural. Existem coisas inimagináveis para quem as desconhece. Isso aconteceu comigo. Até o cáustico, danoso, mas enigmático sertão é sensacional. Na chuva intensa ou no sol inclemente, você sente haver algo de transcendental, que o faz sobrepor-se sobre todas essas forças da natureza. Isto, sem falar no povo guerreiro, hospitaleiro e de bom coração, que muito contribuiu para que pudéssemos alcançar nosso objetivo.
Aproveito e cito um pequeno trecho do livro:
Dia 17 de fevereiro. Teófilo Otoni-MG 4º Dia de viagem.
No subir e descer montanhas e observando com cuidado a estrada, eis que ao chegar numa elevação superior a muitas outras que estavam adiante, tive a felicidade em avistar um horizonte espetacular. Que maravilha! É indescritível. Só morros e matas, mais nada, a não ser a chuva que torna mais verde aquela natureza pura! Os morros, imponentes, austeros e fortes; As matas, maravilhosamente verdes com belas e frondosas árvores. E quanto oxigênio puro só para nós dois! Isso é mais delicioso do que qualquer perfume raro. É vida, muita vida!
Mas se por um lado a visão se apresentava espetacular com forte sensação de segurança e bem estar, por outro, essa mesma vista tornava-se assustadora. E vou dizer por que: Quando do alto desse morro admirei essa deslumbrante natureza que descrevi, vi também uma estrada infinitamente reta (muitos retões) subindo e descendo morros até desaparecer na linha do horizonte onde a vista já não mais a alcançava. Nesse momento, com sentimento de leve insegurança disse para mim mesmo: Quanto mais ainda andaremos debaixo do sol escaldante; da poeira incomodativa; da chuva que torna a lama perigosa; e do frio por demais intenso no alto desses morros?
Por volta do meio-dia passamos pela cidade de Águas Vermelhas e somente às 19:00h chegamos à Divisa Alegre onde fizemos uma parada e aproveitei para abastecer a moto nesse último Posto Fiscal de Minas Gerais.
E conforme anotação no meu Diário de Viagem, além deste Posto em Divisa Alegre já havíamos passado por Águas Vermelhas; Teófilo Otoni; Governador Valadares; Caratinga; Muriaé e Itaipava, retroativamente.
Moradores que estavam naquele momento batendo papo próximo ao Posto Rodoviário, escutando casualmente qual seria nosso destino, alertaram-nos que o trecho adiante aonde iríamos passar era muito perigoso por ser um lugar alto, muito ermo e com pouquíssimo movimento na estrada à noite.
Escutamos atenciosamente, agradecemos a informação e saímos.
Como existe o ditado “seguro morreu de velho”, tirei finalmente a pistola da maleta e entreguei-a ao Fernando, recomendando: Vá com ela engatilhada na mão, pronta para disparar, mas sempre apontada para baixo. Qualquer perigo que surja, aí, sim, levante mire e atire! Atire mesmo! E fomos embora.
Tudo pronto e resolvido partimos imediatamente tendo em vista que nossa intenção era atravessar a fronteira com a Bahia e chegar logo à Nova Conquista, que já estava bem próxima.
Nesse percurso também enfrentamos muitos mosquitos pelo caminho, mas dessa vez protegemos o rosto passando o cachecol sobre o nariz como se fosse máscara.
Viajamos à noite sem luz para iluminar nosso caminho porque, estando o dínamo ainda enguiçado, a bateria não tinha mais carga. E por não ter encontrado quem pudesse consertá-lo, resolvi deixá-lo desativado.
O céu estava cravejado de estrelas. O luar... que maravilha! O chão claro, todo iluminado, até parecia um espelho. A claridade da noite estava tão intensa, que até os vaga-lumes devem ter ficado envergonhados em acender seus pisca-piscas pelo fato das suas luzinhas esmaecerem sob aquele forte luar. E com essa maravilha à nossa frente, pra que farol? Farol pra que? Perder essa natureza noturna no interior do Brasil, isenta de qualquer iluminação artificial? Isso é místico, é raro... É sensacional!
O local por onde circulávamos naquele momento era muito alto, e o frio era tanto, que todos tremíamos convulsivamente: Eu, o Fernando e até a Norton, que por sua vez trepidava.
O céu, feericamente iluminado, parecia estar pouco acima das nossas cabeças, dando-nos a impressão que se levantássemos os braços tocaríamos as estrelas.
Dia 14 de março. Campina Grande-PB 30º Dia de viagem.
Ficando a moto na oficina para regulagens e reajustes, o pessoal do Moto Clube colocou-nos nas garupas das motos e nos levaram para jantar no elegante restaurante Bolero. No trajeto perguntamos onde ficava determinado bairro, por se o local onde moravam as mães da Gabriela e da Mariazinha, garotas que em Ibimirim-PE havíamos prometido entregar às suas respectivas mães os bilhetes que fizeram, pedindo para voltarem às suas casas.
Pegamos uma condução e fomos na direção que nossos cicerones haviam indicado. Por estar chovendo, tivemos dificuldade para pegar a condução mais adequada e acabamos saltando num lugar ermo e distante da casa delas. Solicitando uma orientação às pessoas que passavam apressadas devido à chuvinha que caía, conseguimos saber que, para encurtar caminho, não termos de subir ladeiras e sairmos exatamente onde queríamos, era ir por dentro do cemitério porque, se assim não fizéssemos teríamos de dar uma volta muito grande. E com chuva, já viu o transtorno que seria esse outro caminho.
O Fernando, por sua vez, achou melhor que andássemos mais, porém não concordei. A chuva incomodava muito e quanto mais rápido chegássemos à casa das mães das garotas, estaríamos livres para irmos embora. Então falei para o Fernando que iríamos mesmo era pelo Cemitério. Ao ouvir isso, quase que ele cai para trás!
Se eu tivesse adivinhado o que iria acontecer, não teria ido por dentro do cemitério.
Muro baixo, fácil de escalar, não era problema. Para não nos perdermos lá dentro, teríamos de ter referências a fim de sairmos onde nos indicaram.
Para o Fernando pular o muro foi um custo por colocar uma porção de dificuldades, tendo em vista o medo que expressava através da fisionomia. Já lá dentro dizia estar vendo alguém e que esse alguém poderia ser o vigia. Eu dizia para ele então que ficasse calado, pois assim o vigia não nos ouviria, e que andasse depressa por causa da chuva. Não satisfeito, me chamou porque viu uma luzinha sobre uma sepultura, depois disse que à noite cemitério pode até ter fantasma, etc.etc. Eu, cheio dessas lamúrias dele, apressei o passo para que me acompanhasse com dificuldade e assim se esquecesse daquelas bobagens.
Realmente não mais escutei suas lamentações por um bom tempo. Mas achando estranho ele ter-se calado tão rápido e por tanto tempo, parei, olhei para trás e não vi o Fernando. Mas pude ver, embaixo de uma pequena marquise que ornava uma sepultura, linda e enorme coruja cinza e branca (devia ter uns 40/50cm de altura) que ali estava protegendo-se da chuva. Completamente imóvel, olhava para mim com seus olhos claros e enormes, parecendo até que queria me “paquerar” pelo fato de vez por outra piscar aqueles grandes olhos. Mas preocupado que estava com o Fernando, observei-a somente um pouco. Olhei em volta e não vendo mesmo o Fernando, pensei: Será que por estar apavorado, voltou?
Mais concentrado, porém, escuto um som abafado que vinha de dentro do cemitério, mas bem difícil de ser localizado. Continuando a escutar aquele som estranho, fui voltando com bastante atenção para ver afinal do que se tratava. Ao me aproximar e ficando por isso o som mais alto, consegui finalmente localiza-lo. Vinha de dentro de uma cova bem profunda, aberta talvez naquele dia e adivinhem quem estava lá dentro? Perfeitamente. O Fernando.
Aconteceu que, com medo e olhando para onde não devia, bobeou e caiu na cova. Naquele momento estava tão assustado que quase não podia falar.
Não conseguia subir porque, tentando segurar nas bordas, elas desmanchavam por estarem moles devido às chuvas, e nas várias tentativas que havia feito, a terra molhada caía forte por cima dele. Apavorando-se cada vez mais pelas tentativas frustradas, estava achando que ia enterrar-se a si mesmo. Então começou a gritar com a voz embargada de medo.
Vendo aquela situação, me abaixei, segurei seu pulso direito com minha mão direita e ele fez o mesmo (as mangas dos blusões estavam escorregando). Puxei-o, ele colocou a mão esquerda fora da cova, ajudou no impulso e saiu. Saiu, sim, mas todo sujo de lama da cabeça aos pés.
Seguimos caminhamos rápido. Ele segurando a aba do meu blusão de couro, eu dizendo para não me sujar de lama porque teria de falar com as mães das garotas. Falei também que, quando eu estivesse falando com elas, ele nem chegasse perto por que, sujo como ele estava e não sabendo elas o que havia acontecido, poderiam até se assustar pensando ter havido briga, e nós tínhamos de entregar-lhes, sem falta, os bilhetes.
Tomei o cuidado de passar bem longe de onde estava a coruja porque, se ele a visse após o trauma por que havia passado, sem dúvida teria de carregá-lo desmaiado cemitério afora.
Depois que pulamos o muro do cemitério para a rua, não deu nem mais um pio. Após andarmos um pouco, rapidamente localizamos as casas, mas como chovia fino falei que se protegesse da chuva e me esperasse.
Fui primeiro à casa da mãe da Gabriela e por sorte as duas mães estavam juntas pelo fato de se visitarem devido à proximidade das moradias. Tirei os envelopes do bolso, entreguei-lhes e pedi que juntas os lessem com bastante carinho, pois foram carinhosamente escritas pelas filhas. Sem querer fazer ou receber qualquer comentário, tratei de me despedir e saí. Missão cumprida, finalmente!.
Passando onde o Fernando estava e dizendo-lhe estar felizmente tudo resolvido, que a promessa estava cumprida, chamei-o para irmos embora. Nisso, mais que depressa me diz:
Mas pelo Cemitério, não! Por lá eu não vou!
Grande abraço
João Cruz j.v.cruz@oi.com.br
De repente lembrei-me do carnaval e fiz junção com minha viagem pelo nordeste em 1960.
Mensagem carnavalesca que um veterano motociclista dedica aos seus jovens ‘irmãos’ estradeiros:
Há 50 anos atrás, ou seja, dia 14 de fevereiro de 1960, eu e um garupa saímos do Rio de Janeiro (Distrito Federal na ocasião) montados numa motocicleta para conhecermos o carnaval do Recife-PE, quando a estrada Rio-Bahia ainda era de terra e conhecida como “estrada da morte”.
Sem qualquer noção do que iríamos enfrentar e sem nenhuma pesquisa prévia sobre o percurso, tendo em mãos somente um mapa que na época era ofertado nos Postos de gasolina, partimos e durante o percurso “comemos o pão que o diabo amassou”.
Para início de conversa era uma moto modelo ‘street’ 500cc (não uma trail), que enfrentou barro, pedras, buracos e atoleiros. Havia ocasião que, após atolados saíamos de cima da moto e ela ficava em pé sozinha, presa pelo cárter e até a metade das rodas. Ato contínuo cortávamos galhos da caatinga (pequenas árvores que ladeavam a estrada), quebrávamos em tamanhos de 30/40cm e colocávamos na frente da roda dianteira, tal como uma esteirinha (trilha). Cavávamos até desatolar a moto e a empurrávamos por sobre a esteirinha até ao final do atoleiro. Montávamos nela e seguíamos em frente. Os menores atoleiros tinham cerca de 10m. de extensão.
Havia trechos que só nós conseguíamos passar, por haver a possibilidade desse e de outros recursos que só a motocicleta permitia. Motoristas de carros e caminhões que há muitos dias estavam ‘ilhados’ na beira da estrada, davam vivas quando por eles passávamos (hoje em dia isso não mais acontece por estar a Rio-Bahia toda pavimentada).
Mas em compensação muita coisa bonita vimos pelo nordeste, razão de fazer aqui um convite àqueles que não o conhecem para que o visitem, pois é maravilhoso. Se lerem o meu livro “Motociclistas Invencíveis” onde existe completo relato da viagem, verão tratar-se de uma região deslumbrante, carismática e de notável beleza natural. Existem coisas inimagináveis para quem as desconhece. Isso aconteceu comigo. Até o cáustico, danoso, mas enigmático sertão é sensacional. Na chuva intensa ou no sol inclemente, você sente haver algo de transcendental, que o faz sobrepor-se sobre todas essas forças da natureza. Isto, sem falar no povo guerreiro, hospitaleiro e de bom coração, que muito contribuiu para que pudéssemos alcançar nosso objetivo.
Aproveito e cito um pequeno trecho do livro:
Dia 17 de fevereiro. Teófilo Otoni-MG 4º Dia de viagem.
No subir e descer montanhas e observando com cuidado a estrada, eis que ao chegar numa elevação superior a muitas outras que estavam adiante, tive a felicidade em avistar um horizonte espetacular. Que maravilha! É indescritível. Só morros e matas, mais nada, a não ser a chuva que torna mais verde aquela natureza pura! Os morros, imponentes, austeros e fortes; As matas, maravilhosamente verdes com belas e frondosas árvores. E quanto oxigênio puro só para nós dois! Isso é mais delicioso do que qualquer perfume raro. É vida, muita vida!
Mas se por um lado a visão se apresentava espetacular com forte sensação de segurança e bem estar, por outro, essa mesma vista tornava-se assustadora. E vou dizer por que: Quando do alto desse morro admirei essa deslumbrante natureza que descrevi, vi também uma estrada infinitamente reta (muitos retões) subindo e descendo morros até desaparecer na linha do horizonte onde a vista já não mais a alcançava. Nesse momento, com sentimento de leve insegurança disse para mim mesmo: Quanto mais ainda andaremos debaixo do sol escaldante; da poeira incomodativa; da chuva que torna a lama perigosa; e do frio por demais intenso no alto desses morros?
Por volta do meio-dia passamos pela cidade de Águas Vermelhas e somente às 19:00h chegamos à Divisa Alegre onde fizemos uma parada e aproveitei para abastecer a moto nesse último Posto Fiscal de Minas Gerais.
E conforme anotação no meu Diário de Viagem, além deste Posto em Divisa Alegre já havíamos passado por Águas Vermelhas; Teófilo Otoni; Governador Valadares; Caratinga; Muriaé e Itaipava, retroativamente.
Moradores que estavam naquele momento batendo papo próximo ao Posto Rodoviário, escutando casualmente qual seria nosso destino, alertaram-nos que o trecho adiante aonde iríamos passar era muito perigoso por ser um lugar alto, muito ermo e com pouquíssimo movimento na estrada à noite.
Escutamos atenciosamente, agradecemos a informação e saímos.
Como existe o ditado “seguro morreu de velho”, tirei finalmente a pistola da maleta e entreguei-a ao Fernando, recomendando: Vá com ela engatilhada na mão, pronta para disparar, mas sempre apontada para baixo. Qualquer perigo que surja, aí, sim, levante mire e atire! Atire mesmo! E fomos embora.
Tudo pronto e resolvido partimos imediatamente tendo em vista que nossa intenção era atravessar a fronteira com a Bahia e chegar logo à Nova Conquista, que já estava bem próxima.
Nesse percurso também enfrentamos muitos mosquitos pelo caminho, mas dessa vez protegemos o rosto passando o cachecol sobre o nariz como se fosse máscara.
Viajamos à noite sem luz para iluminar nosso caminho porque, estando o dínamo ainda enguiçado, a bateria não tinha mais carga. E por não ter encontrado quem pudesse consertá-lo, resolvi deixá-lo desativado.
O céu estava cravejado de estrelas. O luar... que maravilha! O chão claro, todo iluminado, até parecia um espelho. A claridade da noite estava tão intensa, que até os vaga-lumes devem ter ficado envergonhados em acender seus pisca-piscas pelo fato das suas luzinhas esmaecerem sob aquele forte luar. E com essa maravilha à nossa frente, pra que farol? Farol pra que? Perder essa natureza noturna no interior do Brasil, isenta de qualquer iluminação artificial? Isso é místico, é raro... É sensacional!
O local por onde circulávamos naquele momento era muito alto, e o frio era tanto, que todos tremíamos convulsivamente: Eu, o Fernando e até a Norton, que por sua vez trepidava.
O céu, feericamente iluminado, parecia estar pouco acima das nossas cabeças, dando-nos a impressão que se levantássemos os braços tocaríamos as estrelas.
Dia 14 de março. Campina Grande-PB 30º Dia de viagem.
Ficando a moto na oficina para regulagens e reajustes, o pessoal do Moto Clube colocou-nos nas garupas das motos e nos levaram para jantar no elegante restaurante Bolero. No trajeto perguntamos onde ficava determinado bairro, por se o local onde moravam as mães da Gabriela e da Mariazinha, garotas que em Ibimirim-PE havíamos prometido entregar às suas respectivas mães os bilhetes que fizeram, pedindo para voltarem às suas casas.
Pegamos uma condução e fomos na direção que nossos cicerones haviam indicado. Por estar chovendo, tivemos dificuldade para pegar a condução mais adequada e acabamos saltando num lugar ermo e distante da casa delas. Solicitando uma orientação às pessoas que passavam apressadas devido à chuvinha que caía, conseguimos saber que, para encurtar caminho, não termos de subir ladeiras e sairmos exatamente onde queríamos, era ir por dentro do cemitério porque, se assim não fizéssemos teríamos de dar uma volta muito grande. E com chuva, já viu o transtorno que seria esse outro caminho.
O Fernando, por sua vez, achou melhor que andássemos mais, porém não concordei. A chuva incomodava muito e quanto mais rápido chegássemos à casa das mães das garotas, estaríamos livres para irmos embora. Então falei para o Fernando que iríamos mesmo era pelo Cemitério. Ao ouvir isso, quase que ele cai para trás!
Se eu tivesse adivinhado o que iria acontecer, não teria ido por dentro do cemitério.
Muro baixo, fácil de escalar, não era problema. Para não nos perdermos lá dentro, teríamos de ter referências a fim de sairmos onde nos indicaram.
Para o Fernando pular o muro foi um custo por colocar uma porção de dificuldades, tendo em vista o medo que expressava através da fisionomia. Já lá dentro dizia estar vendo alguém e que esse alguém poderia ser o vigia. Eu dizia para ele então que ficasse calado, pois assim o vigia não nos ouviria, e que andasse depressa por causa da chuva. Não satisfeito, me chamou porque viu uma luzinha sobre uma sepultura, depois disse que à noite cemitério pode até ter fantasma, etc.etc. Eu, cheio dessas lamúrias dele, apressei o passo para que me acompanhasse com dificuldade e assim se esquecesse daquelas bobagens.
Realmente não mais escutei suas lamentações por um bom tempo. Mas achando estranho ele ter-se calado tão rápido e por tanto tempo, parei, olhei para trás e não vi o Fernando. Mas pude ver, embaixo de uma pequena marquise que ornava uma sepultura, linda e enorme coruja cinza e branca (devia ter uns 40/50cm de altura) que ali estava protegendo-se da chuva. Completamente imóvel, olhava para mim com seus olhos claros e enormes, parecendo até que queria me “paquerar” pelo fato de vez por outra piscar aqueles grandes olhos. Mas preocupado que estava com o Fernando, observei-a somente um pouco. Olhei em volta e não vendo mesmo o Fernando, pensei: Será que por estar apavorado, voltou?
Mais concentrado, porém, escuto um som abafado que vinha de dentro do cemitério, mas bem difícil de ser localizado. Continuando a escutar aquele som estranho, fui voltando com bastante atenção para ver afinal do que se tratava. Ao me aproximar e ficando por isso o som mais alto, consegui finalmente localiza-lo. Vinha de dentro de uma cova bem profunda, aberta talvez naquele dia e adivinhem quem estava lá dentro? Perfeitamente. O Fernando.
Aconteceu que, com medo e olhando para onde não devia, bobeou e caiu na cova. Naquele momento estava tão assustado que quase não podia falar.
Não conseguia subir porque, tentando segurar nas bordas, elas desmanchavam por estarem moles devido às chuvas, e nas várias tentativas que havia feito, a terra molhada caía forte por cima dele. Apavorando-se cada vez mais pelas tentativas frustradas, estava achando que ia enterrar-se a si mesmo. Então começou a gritar com a voz embargada de medo.
Vendo aquela situação, me abaixei, segurei seu pulso direito com minha mão direita e ele fez o mesmo (as mangas dos blusões estavam escorregando). Puxei-o, ele colocou a mão esquerda fora da cova, ajudou no impulso e saiu. Saiu, sim, mas todo sujo de lama da cabeça aos pés.
Seguimos caminhamos rápido. Ele segurando a aba do meu blusão de couro, eu dizendo para não me sujar de lama porque teria de falar com as mães das garotas. Falei também que, quando eu estivesse falando com elas, ele nem chegasse perto por que, sujo como ele estava e não sabendo elas o que havia acontecido, poderiam até se assustar pensando ter havido briga, e nós tínhamos de entregar-lhes, sem falta, os bilhetes.
Tomei o cuidado de passar bem longe de onde estava a coruja porque, se ele a visse após o trauma por que havia passado, sem dúvida teria de carregá-lo desmaiado cemitério afora.
Depois que pulamos o muro do cemitério para a rua, não deu nem mais um pio. Após andarmos um pouco, rapidamente localizamos as casas, mas como chovia fino falei que se protegesse da chuva e me esperasse.
Fui primeiro à casa da mãe da Gabriela e por sorte as duas mães estavam juntas pelo fato de se visitarem devido à proximidade das moradias. Tirei os envelopes do bolso, entreguei-lhes e pedi que juntas os lessem com bastante carinho, pois foram carinhosamente escritas pelas filhas. Sem querer fazer ou receber qualquer comentário, tratei de me despedir e saí. Missão cumprida, finalmente!.
Passando onde o Fernando estava e dizendo-lhe estar felizmente tudo resolvido, que a promessa estava cumprida, chamei-o para irmos embora. Nisso, mais que depressa me diz:
Mas pelo Cemitério, não! Por lá eu não vou!
Grande abraço
João Cruz j.v.cruz@oi.com.br
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